Recorro à obra de José Saramago “Ensaio sobre a Cegueira”, em que o autor nos conta a história de uma epidemia que assola as pessoas de uma grande metrópole e as deixa cegas. As autoridades, diante disso, colocam as pessoas “em quarentena” num manicômio, por acreditar que a doença seja contagiosa. Pretendo, assim, fazer uma analogia com a cegueira botânica e o zoochauvinismo, que consiste na tendência generalizada de considerar plantas seres inferiores aos animais.

Imagine que, por uma razão qualquer, você esteja sozinho, perdido em uma mata ou numa floresta… e, sendo boazinha, aqui no Brasil e no estado de São Paulo.  Aaaahhh é impossível esse fato acontecer comigo!!! Será mesmo??

Enfim… ainda é dia e você consegue reconhecer alguns animais mesmo sem saber distinguir as espécies e, consequentemente, ignorando alguns riscos que poderia correr. Provavelmente identificaria alguns insetos como formigas; alguns aracnídeos como aranhas e escorpiões; alguns vertebrados terrestres como mamíferos: capivara, macacos e bicho-preguiça, aves: bem-te-vi, tucano e beija –flor; anfíbios como sapos, pererecas e rãs; répteis como cobras, lagartos e, talvez, jacarés. Peixes, caso tivesse algum curso d´água superficial, mas como vê-los e reconhecê-los?

E plantas??? Quais você conseguiria identificar? Talvez alguma palmeira, pitangueira…. e…. e o que mais, mesmo?? E olha que, segundo muitos estudos, incluindo os que estão disponíveis no Programa REFLORA/CNPq, lançado em 2010 pelo governo brasileiro, a Flora brasiliensis é reconhecida como a mais rica do mundo (Forzza et al. 2012).  Estudos recentes apontam para a existência de pelo menos 7.880 espécies florestais arbóreas nativas no Brasil, número que provavelmente represente apenas 80% do total existente. E quantas você conhece? Será que elas são apenas um cenário para a vida animal?

Nos séculos passados era “moda” estudar e conhecer botânica. Os nobres tinham estufas belíssimas, onde passavam horas a fio, estudando a flora do local onde estavam vivendo. Mas esse interesse por botânica começou muito tempo antes, na Grécia antiga, entre 317 e 287 anos a.C., quando surgiram os primeiros estudos relacionados às plantas, tendo como o “pai da botânica, o filósofo Theophrastus, sucessor de Aristóteles e que deu início à história da ciência, a partir da identificação de vegetais.

Daí o tempo foi passando, e a noite foi chegando e a fome, apertando. Você não sabe caçar nem tem nenhuma arma para se defender; não sabe onde dormir e pensa: já sei – vou comer alguma planta e me abrigar sob ou sobre ela. Mas daí você se lembra de que não conseguiu identificar quase nenhuma e não tem ideia da prestabilidade daquelas dezenas que o rodeiam. Então eu lhe pergunto:

Mas de que lhe serve saber botânica?

Pois é. Contemporaneamente, especialmente no Ocidente, a botânica – hoje chamada de Biologia Vegetal – é considerada um tema maçante, árido, desestimulante, limitado, desconexo do cotidiano dos alunos, ultrapassado e fora do contexto da biologia (nem cai no vestibular !), contrariamente aos estudos de anatomia e fisiologia humana; dos animais, aliado ao zoocentrismo didático, que se tornou uma forte corrente filosófica e ideológica nos séculos XX e XXI, denotando questões acerca do bem-estar animal e políticas sobre eles.

Nota-se que há uma predileção e massificação das representações animais em todos os níveis de ensino, onde os livros didáticos de biociências brasileiros estão ricamente recheados de gravuras e textos sobre animais, em detrimento de outros seres vivos, negligenciando intencionalmente o reino das plantas, que desperta pouco ou nenhum interesse, caracterizando a CEGUEIRA BOTÂNICA, que corrobora os reflexos negativos no ensino, na pesquisa em biologia e no cotidiano das pessoas.

Mas de que me servem esses seres inertes, sem graça que só crescem verticalmente feitos de pau e folhas, às vezes flores e frutos, se nem de planta eu gosto?? Sujam e arrebentam as calçadas, têm gosto ruim. Podem cair em cima das casas e dos carros. Nas minhas mãos, até cactos morrem. Só servem para fazer coroas de flores para gente morta. E por aí vai, acelerando e acentuando a Cegueira Botânica, implicando na incapacidade de as pessoas notarem as plantas em seu cenário natural e/ou reconhecerem sua real importância para a biosfera.

Para que elas servem afinal? Quem assistiu ao épico filme do robô Wall-E, produzido em 2008 pela Pixar Animation Studios, em que, o tempo todo, ele procurava e depois defendia a todo custo uma plantinha em uma bota que simbolizava o retorno ao planeta Terra, talvez tenha se sensibilizado, pois a existência de uma planta representava que os ecossistemas estariam aptos ao restabelecimento da vida e dos seres humanos no planeta.

Plantas não apenas geram oxigênio e absorvem gás carbônico. A existência desses maravilhosos seres vai muito além desses processos, participando diretamente dos ciclos biogeoquímicos. Elas estão diretamente presentes em nosso cotidiano o tempo todo, pois são essenciais para o controle da temperatura e do equilíbrio e dinâmica da água no planeta Terra.

Fornecem-nos alimentos, matéria prima para fabricação de combustíveis e geração de energia renováveis, fibras para confecção de vestuário, metabólitos que são utilizados na fabricação de medicamentos e substâncias utilizadas na agropecuária. Servem de abrigo para inúmeros seres vivos que co-evoluíram com elas, são fundamentais nas teias alimentares, fertilizam o solo, apresentam valor cultural refletido nas lendas e mitos, e valor econômico, pois fortalecem a agricultura gerando trabalho e renda;  suas flores servem de atrativo e alimento para insetos, pássaros e uma infinidade de animais; suas raízes facilitam a infiltração e drenagem das águas pluviais; suas folhas evapotranspiram, criando um microclima que contribui para a diminuição de ilhas de calor e melhoria da saúde da população e, ainda, embelezam as nossas vidas, sendo essenciais para a sobrevivência de todas as  formas de vida em nosso planeta.

São inúmeras as alegações que contribuíram para a institucionalização da Cegueira Botânica. Wandersee  e  Schussler  (2001) a definem como a incapacidade de ver ou notar as plantas em seu ambiente. Disso decorre a incapacidade de reconhecer a importância das plantas para a biosfera e os seres vivos. Incapacidade de apreciar as características morfológicas e únicas das plantas e não dar importância equitativa a plantas e animais. Essa visão leva a uma conclusão errônea de que plantas são seres inferiores aos animais desde o século IV a.C., com Gagliano na Grécia Antiga, que via as plantas como serviçais da humanidade. Diante de tantas maravilhas reveladas, que tal trocar a antipatia pela empatia por seres que nos proporcionam a própria vida??

Profª Elisete Peixoto de Lima é professora nas áreas de Biologia e química e mestre em saúde coletiva e também é voluntária da ONG SOS Rio Dourado